Quilombo, raiz de uma raça singular

Airan Albino
14 min readMar 6, 2020

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Escola de samba criada por Candeia pesquisava história e transformava em arte popular

“Eu sou povo. Basta de complicações. Extraio o belo das coisas simples que me seduzem. Quero sair pelas ruas dos subúrbios com minhas baianas rendadas sambando sem parar. Com minha comissão de frente digna de respeito. Intimamente ligado às minhas origens. Artistas plásticos, figurinistas, coreógrafos departamentos culturais, profissionais: não me incomodem, por favor. Sintetizo um mundo mágico. Estou chegando…”.

Este trecho do Manifesto do Quilombo, escrito pelo professor João Baptista M. Vargens, resume o contexto do carnaval da cidade do Rio de Janeiro nos anos 1970. A insatisfação pelos descaminhos que as escolas de samba tomavam fez surgir um lugar de resistência e união que se propôs a retomar as origens afro-brasileiras desses espaços: Grêmio Recreativo de Arte Negra Escola de Samba Quilombo. Um dos seus fundadores foi Antônio Candeia Filho, que se afastou da Portela em 1975, por conta da transformação das escolas em empresas culturais integradas na economia de consumo e no sistema financeiro do Rio.

Carnavalescos e o embranquecimento do carnaval

Essa ruptura dentro do carnaval carioca começa a dar sinais uma década antes em diversas escolas de samba. No início dos anos 1960, Ismael Silva (1905–1978), da Estácio de Sá, e Cartola (1908–1980), da Mangueira, já criticavam as escolas que eles tinham ajudado a fundar na década de 1920 por deixarem de ser uma festividade popular.

Cartola no desfile da Mangueira. Crédito: Arquivo O Globo

Em 1962, acontece o Primeiro Congresso Nacional do Samba, reunindo músicos, intelectuais e jornalistas para debater as mudanças no caráter das escolas. Conforme artigo do historiador Guilherme Motta Faria, uma ‘Carta do Samba’ foi escrita em 2 de dezembro — que passou a ser o Dia Nacional do Samba. Nela constam as recomendações coletivas do congresso para a proteção da essência cultural do samba frente à modernização.

Mesmo assim, o carnaval tornou-se um comércio em 1962. Arquibancadas foram construídas para acompanhar os desfiles, ingressos passaram a ser cobrados, medidas punitivas pela duração máxima permitida na avenida foram incluídas. As escolas foram obrigadas a expandir suas bases sociais para acomodar os turistas e os moradores da classe média carioca. O registro de direitos autorais para a composição dos sambas-enredo obrigou as escolas a se adaptarem às exigências da indústria fonográfica.

Mas a principal mudança que representa esse período é a figura do carnavalesco. Uma nova categoria de figurinistas, coreógrafos, cenógrafos profissionalizados, alguns de formação universitária. Fernando Pamplona (1923–2013) é o mais célebre, atuando no Acadêmicos do Salgueiro de 1960 a 1978. Sob sua orientação, enredos galgados na cultura afro-brasileira foram tema no Salgueiro, como o Quilombo dos Palmares, Chica da Silva e a Bahia de Todos os Deuses.

O carnavalesco do Salgueiro, Fernando Pamplona. Crédito: Arquivo Extra

Na Portela, escola em que Candeia fazia parte da ala dos compositores, a direção administrativa e a composição artística já estavam em discordância. Em 1967, Monarco, uma referência dentro da Velha Guarda da Portela, estava aborrecido com o presidente Nelson Andrade, afirmado que a escola estava vencendo carnavais de forma ilícita.

Em 1972, assumiu a Portela o bicheiro Carlinhos Maracanã. Junto do carnavalesco Hiram Araújo, Maracanã fez uma série de atitudes opostas às ideias dos compositores, afastando nomes de veteranos como Zé Keti (1921–1999) e Carlos Elias. No livro Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile, Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti descreve as diferenças em dois grupos.

“Os sambistas tinham filiações comunitárias ao morro, à escola de samba, às suas expressões artísticas e aos seus antecedentes históricos: o samba de terreiro, o samba de partido-alto, o jongo, o samba de roda e o candomblé, ao passo que os carnavalescos mediavam as demandas econômicas e culturais do mundo ‘fora’ da comunidade: o turismo, os consumidores de classe média da zona sul, e a indústria fonográfica”.

Também no ano de 1972, a Associação das Escolas de Samba assinou um contrato com a gravadora Top Tape para realização de LPs. Em pleno período de “milagre econômico” brasileiro, esses LPs estavam entre os mais vendidos do país. Mas essa exposição fez com que as rivais Top Tape e Tapecar controlassem os compositores em conjunto com as escolas. Em 1975, o jornal Última Hora publicou uma matéria afirmando que os compositores eram coagidos pelas escolas de samba a gravar na Tapecar. Se escolhessem outro selo para gravar, ficavam fora da escolha do samba.

Candeia resistiu na Portela até 1975, quando amargou o quinto lugar no carnaval. No mês de março, ele e outros compositores entregaram um documento ao presidente da Portela, propondo uma série de reformas. A proposta era que a escola fosse fiel a suas origens, alegando que quanto mais fosse influenciada por indivíduos não integrados na comunidade, mais deturpada, imitativa e não representativa iria se tornar.

Águia-símbolo da Portela nos anos 1970. Crédito: Arquivo Extra

“A Portela precisa assumir posição em defesa do samba autêntico. Isso não significa um retorno à década de 1930, mas uma posição de autonomia e grandeza suficientes para só aceitar as evoluções coerentes com o engrandecimento da cultura popular”, dizia o texto.

A direção sequer debateu a proposta, então Candeia criou um bloco alternativo num terreno baldio no bairro de Rocha Miranda, levando o nome do histórico Quilombo Palmares.

Em novembro, a Associação das Escolas de Samba assinou um acordo com a Riotur, empresa municipal de turismo, em que substituiu os subsídios estatais às escolas por uma porcentagem dos ingressos para os desfiles. Foi adicionada uma cláusula de exclusividade que as obrigava a participar no calendário oficial de atividades turísticas, enquanto as proibia de aparecer livremente nas ruas sem a autorização e a participação da empresa. O presidente da Riotur, Vitor Pinheiro, fez a seguinte declaração:

“As escolas de samba perderam criatividade em sua evolução, mas ganharam dimensão maior em termos comerciais. Por isso pretende [sic] explorar comercialmente apresentações em clubes, estações de televisão, festas e outras exibições no Rio, no Estado e no exterior”.

Em 8 de dezembro de 1975 com as cores branco, dourado e lilás foi inaugurada como plena escola a GRANES Quilombo, transferida em janeiro de 1976 para Coelho Neto.

Afro-brasilidades relembradas por um Quilombo

Junto com Candeia, a Quilombo tinha em seu corpo-diretor Paulinho da Viola, Monarco, Wilson Moreira (1936–2018), Elton Medeiros (1930–2019), Rubem Confete, os jornalistas Juarez Barroso, Dulce Alves, Lena Frias, e o ator Jorge Coutinho. A nova entidade carnavalesca do Rio de Janeiro era composta por artistas e ativistas que se originavam da própria Portela mas, também, de outros grupos. Além disso, participar das atividades do Quilombo não pretendia substituir a afiliação às escolas existentes, em vez disso o objetivo era criar um “espaço simbólico, criativo”, que congregasse os sambistas da cidade inteira.

“O objetivo da Quilombo era… a gente precisava de um lugar onde a gente possa fazer as coisas que a gente sempre fez. Isso era uma ideia do Candeia. A gente possa cantar os sambas que a gente quiser cantar, de fazer uma festa, reunir as pessoas de todas as escolas, que é uma coisa que não está acontecendo mais”, Paulinho da Viola no documentário Candeia, de Luiz Antônio Pilar.

Os objetivos centrais da GRANES Quilombo eram, segundo Candeia: Desenvolver um centro de pesquisa de arte negra, enfatizando sua contribuição à formação da cultura brasileira; Lutar pela preservação das tradições fundamentais sem as quais não se pode desenvolver qualquer atividade criativa popular; Afastar elementos inescrupulosos que, em nome do desenvolvimento intelectual, apropriam-se de heranças alheias, deturpando a pura expressão das escolas de samba e as transformam em rentáveis peças folclóricas; Atrair os verdadeiros representantes e estudiosos da cultura brasileira, destacando a importância do elemento negro no seu contexto; Organizar uma escola de samba onde seus compositores, ainda não corrompidos ‘pela evolução’ imposta pelo sistema, possam cantar seus sambas, sem prévias imposições. Uma escola que sirva de teto a todos os sambistas, negros e brancos, irmanados em defesa do autêntico ritmo brasileiro.

Era tarefa do Quilombo atrair novos pensadores e novas leituras da história do negro. Do discurso à prática, além das rodas de samba, a escola organizava palestras, exibição de filmes, exposições que tinham a função de reunir a comunidade local para construir um sentido político em torno da negritude e do resgate de suas tradições culturais. A Profa. Beatriz Nascimento (1942–1995) e o Prof. Eduardo de Oliveira e Oliveira (1926–2012) prestaram sua colaboração, entre outros intelectuais populares. Jornalistas, professores universitários, produtores culturais e outros formadores de opinião desempenharam um papel importante na criação da Quilombo.

Os enredos da escola cumpriam função semelhante, optando por apresentar temáticas raciais. Em 1977, o enredo escolhido foi “Apoteose das mãos”, sobre a união dos negros. A Quilombo se apresentou pelas ruas dos subúrbios de Coelho Neto e Acari, e ainda fechou o carnaval na Avenida Presidente Vargas. Com um contingente de 400 pessoas, dentre as quais Paulinho da Viola, Candeia, Martinho da Vila, Clementina de Jesus e sambistas de outras agremiações, roubou o espetáculo, desfilando livre e descontraída pela avenida, sem esquemas, imposições, figurinos ou estrelas, despreocupada com novas fórmulas, apresentação musical ou com contagem de pontos.

Clementina de Jesus e Antônio Candeia Filho no desfile da Quilombo. Crédito: Autor desconhecido

O jornal A Notícia publicou que “a Quilombo mostrou o verdadeiro papel de uma escola de samba e apresentou seu Carnaval de 77 visando apenas realizar a mais genuína festa brasileira”. A matéria do jornal Movimento falou que “as faixas ‘samba sem pretensão’ e ‘samba dentro da realidade brasileira’ tomaram outra dimensão nas horas que antecederam o momento do desfile. O Quilombo reunido, tendo Candeia ao centro, tocava samba-de-roda, lutava capoeira e dançava o jongo”.

Conforme a historiadora Gabriela Buscácio, na década de 1970 três diferentes manifestações culturais buscaram contestar o status quo tendo como ponto central a questão racial. O movimento black Rio, por meio da cultura americana; o Ilê Aiyê e reafricanização do carnaval em Salvador; e a escola de samba Quilombo, com a retomada de ritmos afro-brasileiros.

Em 24 de abril de 1977, o Fantástico (TV Globo) transmitiu uma reportagem com o tema “samba de raiz x black music”. A matéria exibia cenas de um baile soul lotado que acontecia na quadra da Portela. Imagens de pessoas com penteados afro se entrecortavam com entrevistas de sambistas respeitados, como Clementina de Jesus (1901–1987), Elton Medeiros e Candeia. A reportagem terminava com uma interpretação de “Sou mais o samba”, música em que Candeia se posiciona no debate de raça no Brasil. Eu não sou africano, eu não/ Nem norte-americano!/ Ao som da viola e pandeiro/ Sou mais o samba brasileiro!

Para o carnaval de 1978, a artista plástica Raquel Trindade (1936–2018) apresentou o enredo “Ao povo em forma de arte”, inspirada pela frase de seu pai, o poeta Solano Trindade (1908–1976).

“Pesquisar na fonte de origem, e devolver ao povo em forma de arte”. “Eu li aquilo, rapaz. Escândalo, sabe? Um escândalo o negócio. Aí eu falei: ‘Candeia, você não vai me levar mal, não, eu posso deixar o Jorginho Peçanha na direção de harmonia. Eu vou fazer esse samba junto com o Nei Lopes’. Aí eu mostrei o tema pra ele. ‘Nei, aqui o que tu achas, lá do Quilombo. Samba enredo do Quilombo, ao povo em forma de arte. Vamos cair nessa? ‘Vamos! Embora, já tô”, Wilson Moreira no documentário Candeia.

Quilombo/ Pesquisou suas raízes/ E os momentos mais felizes/ De uma raça singular/ E veio/ Pra mostrar esta pesquisa/ Na ocasião precisa/ Em forma de arte popular/. A diretoria do Quilombo decidiu aceitar o convite da Riotur para outra vez fechar o carnaval no centro da cidade. A escola desfilou no subúrbio e na Avenida 28 de Setembro, em Vila Isabel. Candeia pediu a Raquel para que desenhasse fantasias de chitão, palha-da-costa, búzios e que não tivesse alegorias no desfile. O professor Vargens esteve presente e testemunhou a emoção do compositor Casquinha (1905–2018):

“Tá tudo direitinho. Tudo certinho. Parece a Portela de antigamente”.

Afirmação política e as dificuldades em resistir no luto

Em 1978, Candeia se junta ao professor Isnard Araújo (1939–2017), responsável pelo projeto Museu Histórico Portelense, que tinha um acervo de relatos de membros da Portela guardados para a produção de um livro. Em Escola de Samba: árvore que esquece da raiz os dois autores refletem sobre o legado das agremiações carnavalescas, a partir da história da Portela. Segundo o pesquisador inglês David Treece: “longe de ser um simples antimodernismo ‘preservacionista’, a crítica ao modelo industrial das escolas agora se tornava uma defesa explícita da identidade negro-popular”.

“Para se falar em SAMBA temos que falar em negro, para se falar em negro temos que contar sua árdua luta através de muitas gerações, erguendo o seu grito contra o preconceito de raça e cor, herança da escravidão. O negro, com sua luta, vem de muito longe, dos Quilombos e das insurreições de escravos. Se voltarmos para a história nacional, encontraremos sua presença em todos os setores de nossa vida social”, trecho da obra de Candeia e Isnard.

Conforme ensaio da historiadora Raquel Barreto, a professora Lélia Gonzalez (1935–1994) foi visitar a sede do Quilombo, em Coelho Neto, para convidar Candeia a contribuir para o evento de inauguração do Movimento Negro Unificado (MNU), que aconteceria em 7 de julho de 1978. No entanto, Candeia já sofria de complicações associadas à paralisia da cintura para baixo. Ele pediu a Lélia que representasse o Quilombo no seu lugar, apresentando-lhe o tema que havia preparado para o carnaval do ano seguinte, com base nas suas leituras de textos clássicos da história e etnografia negras. Lélia foi co-autora, com Candeia, do enredo “Noventa anos de abolição”.

Em 16 de novembro de 1978, Candeia sofreu uma parada cardíaca, provocada por uma septicemia (infecção na corrente sanguínea), e vem a falecer. A morte de Candeia foi abrupta e ocorreu num momento em que o compositor estava no auge de sua carreira. O samba enredo “Noventa anos de abolição”, de autoria de Nei Lopes e Wilson Moreira, iria se tornar uma homenagem póstuma a Candeia e aos que lutaram contra a escravização no Brasil. Reverenciamos a memória/ Desses bravos que fizeram nossa história/ Zumbis/ Licutã e Aluma/ Zundu/ Loei, Sanin e Dandara/ E os quilombolas de hoje em dia/ São candeia que nos alumia/

Wilson Moreira e Nei Lopes. Crédito: Autor desconhecido

Como consequência imediata, o Esporte Clube Vega, de Coelho Neto, interrompeu o contrato com o Quilombo, resultando na perda de sua sede. “17 a 20 de novembro de 1978, semana comemorativa do herói Zumbi — 90 anos de abolição” era nome da semana de atividades que ocorreriam no clube, recebendo convidados como o diretor Zózimo Bulbul (1937–2013) e o professor Oliveira Silveira (1941–2009).

O livro Candeia — Luz da Inspiração, de João Baptista M. Vargens, sintetiza os enredos da Quilombo após a morte do compositor. Os noventa anos de abolição dos escravos foram comemorados no carnaval de 1979; o enredo “Dia de Graça”, de 1980; no ano seguinte houve o desfile sobre Solano Trindade; Zumbi dos Palmares foi a temática escolhida em 1982; a Revolta da Chibata foi o enredo de 1983; no ano seguinte desfilou se homenageando a rainha Mina do Maranhão, Luís Gama foi o enredo de 1985, e finalmente, em 1986, foi desenvolvido um enredo sobre os cinco séculos de resistência afro-brasileira.

Em depoimento à historiadora Ana Cláudia da Cunha, Feliciano Pereira, conhecido como Candeinha, conta como foi encontrar uma nova sede para a Quilombo.

“Durante 1979, após a perda da sede, alguns poucos encontros foram realizados na ‘tendinha’ do Tião do Mocotó, no bairro de Coelho Neto. Logo em seguida, os encontros foram transferidos para um clube chamado Pau Ferro, no Irajá, do qual Nei Lopes e seus familiares eram fundadores. Em 1980, por empenho e intermédio de Jorge Coutinho, Dulce Alves e apoio dos políticos Jorge Leite e Miro Teixeira, deu-se a conquista da sede em Acari/Fazenda Botafogo, em um terreno cedido pela Companhia Estadual de Habitação (Cehab)”, relata.

Candeinha na GRANES Quilombo. Crédito: Bruno Villas Bôas

Para Selma Teixeira Candeia, filha do compositor, o Quilombo perdeu sua maior referência.

“Depois da morte do meu pai, em 1978, a família se afastou da escola. A gente não tinha estrutura emocional para participar das ações e atividades da Quilombo. Os fundadores deram continuidade no trabalho da escola. Ao longo dos anos, outras pessoas, que não eram pertencentes da comunidade estavam na gestão da escola. Fato que não colaborou para a Quilombo, que já sofria por conta de enchentes”, conta.

A pesquisa de Cunha mostra que em 1981, acontece a primeira crise no Quilombo, devido à divergência de visões e na disputa do samba enredo para 1982. O samba vencedor, que falava sobre Zumbi dos Palmares, creditava os holandeses pela existência do quilombo centenário. A polarização dos discursos e suas diferentes interpretações, gerou um conflito em que muitos deixam a escola.

De 1986 a 2014, o Quilombo segue com atividades voltadas para a comunidade que tivessem relação com a cultura afro-brasileira, como a capoeira, maculelê, jongo, caxambu, aulas de percussão, de cordas, e cursos de culinária.

Entretanto, a região na zona norte do Rio de Janeiro sofreu com as grandes enchentes da cidade, segundo Selma.

“Acari é considerada zona de risco, teve enchentes que chegaram a ter 2 até 3 metros aqui na região. Em 2014, uma grande enchente foi responsável pela suspensão das atividades da Quilombo, destruindo todos os materiais da escola de samba. Cadeiras, quadros, material escolar, tudo. A Quilombo não consegue manter suas atividades atualmente, por conta da falta de interesse das pessoas da comunidade e, também, por falta de apoio de entidades e do Estado. Hoje ninguém mais quer nos ajudar. Estamos procurando um novo espaço”, lamenta.

Legado quilombola

Em 2007, sambistas oriundos de diversas escolas de samba de São Paulo fundaram a Grêmio Recreativo Escola de Samba Quilombo, com o propósito de ser um refúgio, um teto. Nas cores verde e branco, a escola se inspirou na iniciativa de Candeia para resgatar a cultura negra e prestar homenagens às suas referências carnavalescas.

Assim como a escola carioca, a Quilombo de São Paulo não faz parte dos desfiles oficiais da cidade, mas mantém atividades voltadas para a comunidade, como a roda de samba, e escolhe enredos pautados pela questão racial. “Epopéia Zumbi”, de Nei Lopes, foi o primeiro enredo trabalho pela escola, em 2008, e Zumbi-Candeia, o sonho não acabou, a chama não se apagou“ no ano seguinte.

No romance Rio Negro, 50, Nei Lopes conta a história de uma escola de samba ficcional, a Unidos da Floresta:

“A grande diferença da ‘Floresta’ para as outras escolas é que ela mantém, no amplo terreno de sua sede, uma horta, uma granja, uma padaria e uma oficina comunitárias. Da oficina saem os instrumentos, os trajes e fantasias, os carros alegóricos e demais itens industriais do desfile de carnaval. Da horta e da granja, além do alimento básico dos componentes, sai um excedente de produção que é fornecido ao comércio local a preços atraentes. E da padaria saem os já famosos ‘Quitutes da Floresta’, vendidos pelas baianas da escola em seus caprichados tabuleiros, em quase todas as esquinas do centro urbano do Rio. Os lucros do capital dispendido — e os há — são reinvestidos em poupança e aplicações na Caixa Econômica. Assim organizada, e valorizando a prata da casa, a escola vai obtendo boas colocações nos desfiles e ganhando prêmios significativos. Modesta e simpática, ela vai se tornando a ‘segunda escola’ de todos os sambistas; a “queridinha” do povo e da imprensa escrita, falada e televisada. E mais: sua sede no Morro, simples mas confortável, já é própria; e isto num momento em que outras escolas preferem pagar aluguéis em clubes no asfalto, sujeitando-se a todo tipo de influência e manipulação”.

Nova escola, de Candeia

De manhã, quero os raios do sol
Quero a luz, que ilumina e conduz
A magia, e a fascinação
Voa um poeta, nas asas da imaginação
A imagem é livre e aberta
À imagem do seu criador
Samba é a verdade do povo
Ninguém vai deturpar seu valor,
Canto de novo

Canto com os pés no chão
Com coração, canta meu povo
Meu samba, é bem melhor assim
Ao som deste pandeiro
E do meu tamborim
As cores da nossa bandeira
Traz o branco inspirado
Na simplicidade da paz
Sintetiza um mundo
De amor, e nada mais
Simbolizado no dourado e no lilás
Meu samba é bem melhor assim
Ao som deste pandeiro
E do meu tamborim

Lara lara lara
Lara lara lara

*Matéria produzida em fevereiro de 2020 para o Noize Record Club e publicada em março, na edição 97 da Revista Noize.

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Airan Albino

Jornalista pós-graduado pela PUCRS, envolvido com cultura e questões de identidade racial.